segunda-feira, 17 de julho de 2017

VIDA DE SANTA HILDEGARDA



Hildegarda de Bingen nasceu em uma família da pequena nobreza de Bermershein, que estava a serviço dos condes de Sponheim, e que produziu diversas personalidades religiosas e culturais, entre elas dois de seus irmãos, Hugo, mestre do coro da Catedral de Mogúncia e mentor do bispo de Liège, e Roricus, que se tornou cônego da abadiabeneditina de Tholey.[7] O nome da família não foi transmitido com segurança à posteridade, mas é possível que fosse Von Stein, a partir de algumas indicações nos documentos primitivos.[8] Hildegarda foi a décima filha de Hildebert e Mechtild, e por esse motivo teria sido oferecida como dízimo à Igreja, mas é possível que o fato de ela desde tenra infância experimentar visões, combinado à sua saúde precária, teriam sido os motivos principais para destiná-la à vida religiosa.[7][9] Segundo a Vita Sanctae Hildegardis, a mais importante biografia antiga sobre ela, aos três anos de idade ela teve sua primeira experiência espiritual, quando viu uma luz de brilho deslumbrante que fez sua alma tremer, e nos anos seguintes essas visões se repetiram com frequência. Hildegarda relatou algumas delas para as pessoas de sua família, mas, intimidada com a reação de surpresa e desconfiança que causavam, logo cessou de mencioná-las.
Entrega de Hildegarda para Jutta, altar de Santa Hildegarda na igreja paroquial de Bingen.
Ruínas do Mosteiro de Disibodenberg.
Com oito anos foi confiada aos cuidados de Jutta, filha do conde de Sponheim, e que era a mestra (Cf. nota: de um pequeno grupo de monjas enclausuradas de um eremitério anexo ao Mosteiro de Disibodenberg, que as supervisionava. Jutta introduziu Hildegarda no modo de vida dos Beneditinos e deu-lhe as primeiras letras através da leitura das Escrituras. Possivelmente também lhe ministrou elementos de música. Em sua época os mosteiros beneditinos eram uma das melhores opções para os membros da aristocracia germânica que desejavam se dedicar à religião; estavam entre os mais importantes centros de cultura da Europamedieval, e podiam prover uma educação esmerada para os filhos da nobreza. Mas parece que, no seu caso, a julgarmos por suas repetidas declarações anos mais tarde, essa educação inicial foi apenas rudimentar. Suas experiências visionárias continuavam, mas ela mesma ainda não sabia definir sua origem. Dizia que via e ouvia as coisas "em sua alma", chegava a ter sensações táteis e olfativas, e ao mesmo tempo continuava alerta para com o que se passava no mundo físico, e em plena posse de suas faculdades mentais e corpóreas, mas também disse que elas a exauriam, a ponto de deixá-la constantemente doente.
Em 1114 fez seus votos definitivos e ingressou na Ordem, mas a reconstituição de sua vida nesse eremitério é muito difícil; não há relatos descritivos, salvo breves alusões. A partir de crônicas deixadas sobre outras comunidades semelhantes de seu tempo, é provável que seu eremitério tenha seguido em linhas gerais, mas com maior pobreza, a rotina dos monges beneditinos que o supervisionava, passando a maior parte do dia em orações ou trabalhos manuais. O contato com o mundo profano era rigorosamente vedado, e ao que tudo indica não podiam sequer sair para exercitar-se. Em todos os assuntos devem ter dependido dos monges vizinhos, mas não há como saber em que medida Hildegarda se beneficiou da rica vida cultural de que desfrutavam os integrantes masculinos da Ordem. Entretanto, mesmo em todos os outros momentos isoladas do mundo, parece garantido que as missas eram assistidas pelas monjas na igreja dos monges, pois não possuíam uma própria, e pelo menos no que diz respeito à vivência musical e ao aprendizado do latim, da retórica sacra e da doutrina católica, essa frequência deve ter sido de grande importância para a futura carreira de Hildegarda. Logo a fama de virtude de sua mestra, que veio a ser santificada, e a dela própria, começaram a atrair outras monjas, o pequeno eremitério, que inicialmente possuía apenas uma porta e uma janela, foi gradualmente ampliado e se tornou quase um mosteiro autônomo, e o rigor de sua clausura parece ter sido suavizado. É possível que tenha se envolvido então com o cuidado de doentes e gestantes e incrementado suas práticas musicais. Segundo o que disse anos depois, sua saúde melhorou, ela se sentia mais confiante e sua habilidade clarividente se desenvolveu, passando a ser capaz de prever o futuro.

Maturidade

Até a ocasião da morte de Jutta, em 1136, quando foi eleita mestra das monjas de Disibodenberg, as fontes primitivas não dão dados relevantes; ela mesma afirmou em um de seus escritos que sua juventude fora de pouco interesse salvo pelas visões que tinha. Mas em 1141 teve uma visão que abriu-lhe o entendimento para o significado profundo do texto das Escrituras. Numa de suas notas autobiográficas, disse:
Hildegarda escrevendo sob inspiração divina.
"E sucedeu no 1141º ano da encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses, que os céus se abriram e uma luz ofuscante de excepcional fulgor fluiu para dentro de meu cérebro. E então ela incendiou todo o meu coração e peito como uma chama, não queimando, mas aquecendo… e subitamente entendi o significado das exposições dos livros, ou seja, dos Salmos, dos Evangelhos e dos outros livros católicos do Velho e Novo Testamentos".
Ao mesmo tempo uma voz lhe ordenou: "Oh mulher frágil, cinza de cinza e corrupção de corrupção, proclama e escreve o que vês e ouves". Para que não restassem dúvidas, a ordem lhe foi repetida por três vezes. Mas não pôde colocar em prática de imediato o mandado divino. Imaginava-se indigna e isso a atormentava, e temendo o que os outros iriam dizer dela se aparecesse como profeta, entrou em uma crise interior, e adoeceu. Por incentivo do monge Volmar, que provavelmente deu-lhe uma educação complementar mais sólida e ajudou-a na correção do seu latim ainda precário, transcreveu alguma coisa em segredo, os primeiros esboços de seu Liber scivias Domini, mas somente em 1147, ainda hesitante, procurou Bernardo de Claraval, já famoso, em busca de orientação. Escreveu-lhe uma carta onde expunha suas dúvidas e receios, e pedia uma confirmação para seu dom, mas a resposta do celebrado religioso foi circunspecta e evasiva. Não quis assumir a responsabilidade por seus atos, mas encorajou-a a confiar no seu próprio julgamento e através dele atender ao chamado que recebera. Mas logo passou a apoiá-la mais efetivamente, persuadindo o papa Eugênio III a ler alguns de seus escritos iniciais diante do sínodo reunido em Trier em 1147-1148. O papa enviou uma comissão de clérigos para verificar a autenticidade do que tinha em mãos como sendo dela, e, confirmada a autoria, o papa enviou-lhe uma carta louvando seu amor a Deus e sua reputação honrada, aprovando suas visões, o que lhe deu o impulso decisivo para assumir publicamente seu dom profético como uma missão evangelizadora e passasse a lançar ao papel resolutamente e em detalhe o que lhe era revelado.  Escrevia em latim, o que de imediato excluía um público popular, e o próprio conteúdo de seus escritos também os direcionava para a elite. Torna-se surpreendente a sua produção quando se lembra que em seu tempo as mulheres em geral tinham pouquíssimo espaço na vida cultural, civil e religiosa, havia muitos preconceitos contra elas a respeito de sua moralidade e de suas capacidades físicas e intelectuais, e não tinham nenhuma autoridade. Ao mesmo tempo, ela própria se sentia pouco qualificada, alegando ter recebido uma educação pobre e que, comparada com a refinada cultura nas artes liberais que muitos monges recebiam, fazia dela, aos olhos de seus contemporâneos, uma semi-analfabeta. Mas imediatamente depois da aprovação papal, tornou-se uma celebridade em toda a Europa.
Em 1148, obedecendo uma ordem recebida em uma visão, deixou Disibodenberg junto com outras monjas a fim de revitalizar o antigo Mosteiro de Rupertsberg, então arruinado. Era localizado numa região erma, e lá continuou seu trabalho religioso e assistencial, bem como seus escritos. A mudança encontrou resistência no clero e nos monges de Disibodenberg, e inclusive entre suas monjas, mas finalmente, em torno de 1150, o prédio estava restaurado, e o grupo, instalado. Sua primeira obra, o Liber scivias Domini (Livro do conhecimento dos caminhos do Senhor), foi concluída ali em 1151, contendo uma coleção de relatos sobre suas visões até então. Esse período inicial em Rupertsberg foi marcado por várias dificuldades, lutando por verbas para o sustento da comunidade e pela regularização de seu estatuto jurídico, e enfrentando a deserção de várias monjas, perdendo inclusive a sua assistente e discípula favorita, Richardis von Stade, que foi indicada superiora de outro mosteiro. Por outro lado, foi favorecida pelas boas relações de sua família com a nobreza local e com o alto clero. Ela mesma já era famosa e se correspondia com várias personalidades importantes, e ganhou a amizade e a proteção de Frederico II, até que as diferenças dele com o papa fizeram essa amizade esfriar. Também desta fase datam suas primeiras composições musicais e poéticas conhecidas, bem como suas primeiras observações científicas da natureza e textos médicos. A partir de 1158 iniciou sua próxima obra importante, o Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida), onde examinou os vícios e as virtudes da vida humana, mas esteve doente ao longo de quase todo o período em que o escreveu.[17]

Anos finais e morte[editar | editar código-fonte]

A partir de 1160, sempre por força de comandos divinos que lhe impunham doenças até que ela anuísse ao chamado, o que fazia nem sempre de boa vontade ou imediatamente, por temor da rejeição das pessoas, empreendeu diversas viagens pela Alemanha e França a fim de pregar, um privilégio nunca outorgado a mulheres, indo primeiro a MogúnciaWürzburgEbrach e Bamberg. Depois viajou para a Lorena, passando por Trier e Metz. No ano seguinte visitou Colônia e outras cidades, indo até o Ruhr. Em 1163 terminou o Liber vitae e imediatamente iniciou sua obra teológica mais notável, o Liber divinorum operum (Livro das obras divinas), um comentário sobre o prólogo do Evangelho de São João e sobre o livro do Gênesis, aprofundando os temas já tratados no Scivias. A escrita dessa obra sofreu várias interrupções, e só foi terminada em 1174, pouco antes de sua morte. Em 1165 suas tarefas duplicaram com a fundação de um novo mosteiro em Eibingen, para acomodar o crescente número de monjas sob seus cuidados. Visitava-o duas vezes por semana, e nesse período seus biógrafos dizem que fez suas primeiras curas milagoras e exorcismos.[17]
Em torno de 1170, já idosa, uma visão ordenou que ela fizesse uma última viagem, agora para MaulbronnHirsauZwiefalten e outras cidades. De início relutou, como costumava fazer, mas então foi atacada por uma hoste de espíritos malignos que se compraziam em humilhá-la e infligir-lhe intensas dores físicas. Quando finalmente aceitou a incumbência, foi recompensada com a visão de um homem de aparência extraordinariamente formosa e de bondade amantíssima:
"Ao vê-lo senti todo meu ser infuso de um perfume balsâmico. Então exultei com alegria imensa, e desejei permanecer na sua contemplação para sempre. E ele ordenou que os que me afligiam partissem e me deixassem em paz, dizendo: 'Vão, não quero que a atormentem mais!', e eles, partindo, gritaram: 'Ah, sempre que viemos aqui saímos confundidos!' Imediatamente, às palavras do homem, a doença que me afligia, como água empurrada pelo vento, se foi, e eu recuperei as forças".[18]
Mosteiro de Rupertsberg em torno de 1620.
Relicário de Santa Hildegarda na igreja paroquial de Eibingen.
Suas pregações eram audaciosas e veementes, denunciando os vícios do clero e combatendo as heresias, em particular a dos cátaros, que naquela altura estavam penetrando rapidamente na Germânia, fazendo muitos seguidores.[19] Esses périplos exigiam muito de sua saúde, e seus anos finais foram perturbados por uma série de moléstias. Algumas lhe causavam grandes sofrimentos, mas seus dotes intelectuais e espirituais pareciam crescer à medida que o corpo fraquejava. Permaneceu sempre em atividade, escrevendo, debatendo com outros religiosos e atendendo à crescente multidão de pessoas que vinham em busca de seu conselho e dos remédios que preparava.[20] Nesse período escreveu as biografias de São Rupert e São Disibod, um comentário sobre a Regra Beneditina, e outras peças menores. Além de seus problemas de saúde e os administrativos, perdeu em 1173 seu colaborador de longa data, o monge Volmar, e custou a encontrar um substituto. Teve de apelar para o papa Alexandre III, e após longas negociações foi-lhe enviado o monge Gottfried em fins de 1174 ou no início de 1175, que começou a servir de seu assistente e iniciou a compor uma biografia sobre Hildegarda, mas faleceu em 1176 sem terminá-la. Foi então substituído pelo monge Guibert de Gembloux, que também se dedicou a escrever sobre sua vida, e igualmente não terminou o trabalho, abordando apenas seus anos iniciais, o que foi uma lástima dado o vulto do fragmento que sobreviveu.[21]
No último ano de sua vida enfrentou uma outra crise, agora a do interdito que o clero de Mogúncia impôs sobre o seu mosteiro, impedindo a celebração da missa e a prática dos cânticos sacros. O motivo foi o de ela ter permitido o enterro de um nobre alegadamente excomungado no cemitério de seu mosteiro, mas segundo ela este nobre havia sido absolvido in extremis e recebido a eucaristia. A despeito de ter feito apelos às autoridades, explicando o ocorrido, o conflito só piorou e foi necessário o concurso do arcebispo de Mogúncia, que decidiu levantar o interdito em 1179. Mas todo o caso a desgastou profundamente, e depois de conseguir uma solução favorável para si, perdeu as forças e desejou ser liberta do corpo para encontrar a Cristo. Previu a iminência de sua morte e faleceu pacificamente em 17 de setembro do mesmo ano.[20]

As fontes documentais primitivas[editar | editar código-fonte]

Fólio 0317 recto do Riesencodex, com a primeira página da Vita Sanctae Hildegardis.
A principal fonte de informação sobre sua vida é a biografia que foi escrita por seu secretário, o monge Gottfried, Vita Sanctae Hildegardis, mas quando ele morreu, em 1176, deixou a obra inacabada. Somente uma década mais tarde o monge Theoderic, de Echternach, retomou o trabalho, escrevendo mais dois volumes e provendo um prefácio. Embora Gottfried tenha vivido em contato direto com Hildegarda e conhecido muito de sua vida, informações essenciais não foram incluídas no seu livro, nem mesmo o lugar e a data de nascimento foram indicados. Além disso, seu relato é convencionalmente laudatório, mas por outro lado transcreveu boa parte da correspondência de Hildegarda. A contribuição de Theoderic foi também importante porque ele usou longas passagens autobiográficas de material autógrafo que mais tarde foi perdido.[13] Mas como toda hagiografia daquela época, seus autores não se propuseram a oferecer uma narração "objetiva" de sua carreira - o propósito primário foi o de mostrá-la ao mundo como uma sábia, uma profetisa e uma santa, encontrando para todos os seus atos uma justificação sobrenatural e uma inspiração divina, e advogando claramente sua canonização oficial.[22]
Outra fonte de suma importância é a sua própria correspondência, e os prefácios que escreveu para seus livros, onde muitas vezes deu detalhes de como, quando e onde foram escritos. Uma outra biografia, também incompleta, foi deixada pelo monge Guibert de Gembloux, o último secretário de Hildegarda, e sobrevivem ainda alguns documentos eclesiásticos e algumas crônicas posteriores do próprio mosteiro, que acrescentam dados úteis, como a Acta Inquisitionis, elaborada pela Igreja quando as monjas de Rupertsberg pleitearam sua canonização. Recentemente foi descoberta a biografia sobre Jutta, sua mestra, mas se dá um painel interessante sobre o contexto cultural da época e sobre os primeiros anos de Hildegarda, a cronologia que apresenta não concorda com a maioria das outras fontes conhecidas.[13]
Embora com algumas perdas, o principal de sua produção foi preservado e chegou aos dias de hoje. Sobrevivem dez manuscritos integrais do Scivias, cinco do Liber vitae meritorum, cinco do Liber divinorum operum, três do Physica, um do Causae et curae, e dezenove com um número variado de suas cartas, além de um grande número de trechos citados em obras alheias e fragmentos diversos,[23][24] mas o mais importante é o Riesencodex, conservado na Biblioteca Estatal de Hesse, na Alemanha, com sua obra quase completa, excluindo o tratado sobre ciência natural. Foi considerado em sua época como a versão definitiva de seus escritos. Não deve ter sido concluído no período de sua vida, mas com toda probabilidade foi uma edição iniciada por ela mesma, e executada por um grupo de assistentes anônimos de Rupertsberg. Foi escrito como volumes separados, que entre os séculos XV e XVI foram reunidos em um só códice com 481 fólios, pesando 15 kg.[25]

Seu tempo[editar | editar código-fonte]

No período em que Hildegarda viveu a Europa central estava experimentando um período de florescimento depois de séculos de agitações internas, nascidas com a fragmentação do Império Carolíngio, e de ameaças externas nas invasões vikings ao norte e oeste, magiares a leste e mouras no sul. Com a cessação desses problemas a população voltou a crescer, a agricultura e a educação se desenvolveram, a tradição clássica começou a ser recuperada, e foram fundadas novas ordens religiosas. Nesse panorama o reino da Germânia, onde ela nasceu, se foi relativamente poupado das aflições que acometeram o resto da Europa e foi uma das áreas a primeiro dar sinais de revitalização, sua situação não estava isenta de graves problemas internos. A estrutura do reino era fracamente coesa, sendo formado por vários pequenos Estados mais ou menos independentes, muitos deles regidos por clérigos de nascimento nobre, e assim influência da Igreja sobre os assuntos laicos era especialmente forte. Isso não impediu, paralelamente, que surgissem diferenças com o papado, especialmente de parte de Henrique, rei da Germânia e depois imperador do Sacro Império, que acabou excomungado e deposto pelo papa Gregório VII em 1075, o que degenerou em uma guerra civil que durou com altos e baixos até a assinatura da Concordata de Worms em 1122, mas por toda a vida de Hildegarda o clima social permaneceu instável e tenso, ocorreram outros atritos entre o poder laico e o sagrado, e novas batalhas, ainda que os principais conflitos tenham ocorrido longe de sua região e o ritmo da sua vida monástica tenha permanecido mais ou menos livre dos efeitos perturbadores dos acontecimentos políticos e militares.[26]
Na altura do nascimento de Hildegarda a Igreja estava largamente secularizada; a compra de títulos eclesiásticos era corriqueira mesmo por pessoas sem a menor vocação religiosa, príncipes e bispos vendiam abadias e mosteiros sem o menor embaraço a quem pagasse o melhor preço, e seus novos ocupantes por sua vez faziam comércio dos cargos correlatos; a simonia infectara toda a hierarquia do clero e nem o trono papal estava isento. Por outro lado, os Estados germânicos se haviam apropriado das investiduras clericais à revelia da Igreja, e estando os cargos sacros vinculados amiúde à posse de bens e terras, se criou efetivamente toda uma classe de poderosos clérigos que em nada diferiam dos senhores feudais em seus propósitos, práticas e ambições, inclusive mantendo exércitos e mulheres em concubinato. Ademais, sua época foi uma de heresiascismas religiosos e antipapas, e todos esses fatores tornaram a vida religiosa de então tumultuada, desvirtuada e confusa. Boa parte da atuação de Hildegarda foi dedicada a tentar corrigir esse estado de coisas, e sua correspondência com reis e prelados eminentes o prova, não poupando ásperas censuras contra aqueles que considerava corruptos.[27] Quanto à atuação pública das mulheres, havia restrições várias, mais fortes ainda no campo religioso, derivadas do banimento da fala feminina no culto imposto pelo apóstolo São Paulo, e que havia sido estendido para toda atividade de exegese e pregação, e contra essa tendência sua ativa personalidade pública surgiu como uma pioneira.[19]

Misticismo e santidade[editar | editar código-fonte]

A época de Hildegarda viu mudar o conceito de Deus, mudança que tornou a divindade aos olhos das pessoas menos carregada dos atributos da justiça inflexível, da inacessível majestade e da ira vingativa contra os pecadores, e mais cheia de amor para com seus filhos, dando-lhe um caráter mais paternal e benevolente que a aproximou do reino humano. Isso deu origem a um desejo de uma experiência do divino mais direta e íntima, e a legitimação desse desejo pela autoridade eclesiástica foi seguida pelo desenvolvimento de uma religiosidade de índole mística, profusamente colorida por expressões físicas e marcada pelo irracionalismo. Muitos estudos recentes têm apontado para as associações do misticismo medieval com a histeria e outros fenômenos psicossomáticos; vários místicos daquele tempo combinaram intensa devoção com grandes doses de sofrimento corporal, não raro autoinfligido em severas disciplinas e penitências físicas, numa ampla gama de modalidades e efeitos que não excluía o visionarismo de caráter claramente sexual. O misticismo de Hildegarda não foi exatamente típico, mas combinava percepções sensoriais de várias espécies com um conteúdo alegórico-teológico intenso e profundo. Como já foi aludido antes, suas visões lhe surgiam em plena consciência desperta, vendo-as através de seus sentidos espirituais enquanto que permanecia de posse de seus sentidos corporais, e também eram-lhe causa de sofrimento ou exaustão físicos, muito agravados quando ela se recusava ou tardava a colocá-las por escrito, o que ela dizia ser uma punição divina por sua falta de  e pouca obediência.[28]
A fonte da vida, iluminura do Liber divinorum operum.
Alguns pesquisadores modernos acreditam que essas alegadas visões eram alucinações psicossomáticas derivadas de uma neurose histérica, ou efeitos colaterais de uma enxaqueca recorrente, em vista de uma série de sintomas visuais que estão amiúde associados a esta afecção, como halos luminosos em torno dos objetos, luzes ofuscantes e assim por diante. Mas um estudo detalhado de seu comportamento e vida a partir das fontes disponíveis torna a possibilidade da histeria na melhor das hipóteses apenas conjetural, ao mesmo tempo que ela parece ter sido embasada em pressupostos freudianos já em parte desacreditados; por sua vez, a enxaqueca, se de fato pode causar aberrações perceptivas, não pode ser apontada como a origem do conteúdo místico altamente organizado e coerente que as acompanhava.[10][29][30] Sua mestra Jutta praticava um ascetismo rigoroso que incluía penitências e mortificações corporais severas, mas não o impunha a Hildegarda, o que é importante saber porque estudos indicam que aflições físicas drásticas podem induzir a estados alterados de consciência; mas por outro lado as doenças crônicas que sofria podem ter sido as facilitadoras para a ocorrência dos fenômenos e não a sua consequência, como ela julgou. Enfim, a verdadeira origem das suas visões é obscura, restando ainda a possibilidade, rejeitada por muitos estudiosos modernos, de serem de fato obra de Deus.[31]
Tem sido pretexto para muito debate o motivo por que Hildegarda envolveu sua produção científica e moralizante, e mesmo seu trabalho teológico, dentro de uma moldura especificamente mística, pois o interesse pela natureza, a instrução ética e a teologia não são necessariamente parte do universo místico e poderiam ter florescido numa perspectiva acadêmica e/ou pastoral. Uma das explicações mais comuns entre os pesquisadores é a de que ela se viu obrigada a tanto pelo seu contexto sociocultural, numa época em que as mulheres eram objeto de desprezo generalizado. Assim, revestir sua fala com o prestígio da revelação divina teria sido a solução que encontrou para abrir espaço para si num mundo dominado pelos homens. Mas como é válido para toda a religiosidade daquele tempo, tentar decidir se suas visões tiveram uma causa de fato sobrenatural ou se foram produto de distúrbios psíquicos ou físicos, ou se foram um simples recurso estratégico para se fazer ouvir e respeitar, não vem ao caso para os propósitos do estudo de sua vida no contexto de sua época - para os homens do século XII a inspiração divina era tida como uma possibilidade concreta e suas manifestações físicas bizarras ou maravilhosas como parte do mistério inerente à vivência religiosa profunda.[28]
Mesmo possuindo traços místicos, para vários autores, como Newman, Bynum, Bishop e Hart, Hildegarda não deveria ser estudada centralmente dentro da perspectiva do misticismo, pois entendem sua religiosidade não tanto como uma busca da união interna e pessoal com Deus, nem conformada a uma prática de ascetismo intenso, de pobreza evangélica e de isolamento eremítico, que seriam os determinantes do misticismo mais típico, e a descrevem antes como profetisa, pregadora, reformadora da Igreja e visionária, que via as práticas ascéticas extremas como uma tentação a ser evitada. Também apontam em reforço a esta tese a virtual ausência de sua parte de um interesse forte em sua própria subjetividade, e a despeito de suas múltiplas visões internas, elas parecem ter sido consideradas por Hildegarda mais como informações concretas a serem transmitidas ao mundo exterior, como a verdadeira voz divina de que ela era apenas um canal, do que como parte de um universo pessoal seu.[32][33]
Narrações sobre sua benignidade, devoção e piedade são abundantes na biografia escrita por Gottfried e Theoderic, mas isso apenas, para a Igreja, não faz um santo, e são necessários testemunhos fidedignos de milagres. Na Vita são-lhe atribuídos um exorcismo e vinte e cinco curas milagrosas, entre elas a cura de um edema no peito e garganta de uma serva do seu mosteiro ao fazer o sinal da cruz sobre a região afetada; a restauração da visão de um menino com a água do rio Reno, e a cura à distância de um sangramento crônico em uma mulher através do contato de uma carta sua contendo uma bênção, e depois de sua morte foram relatadas outras curas de peregrinos junto ao seu túmulo.[34] Mesmo assim, Hildegarda não fora canonizada oficialmente pela Igreja Católica. Uma tentativa nesse sentido foi orquestrada logo após sua morte por seus amigos e suas monjas, que incluiu o incentivo a romarias à sua tumba, a compilação de uma lista de seus milagres, a construção de um altar para ela, a confecção de versões de luxo de seus escritos - a origem dos manuscritos iluminados e do Riesencodex que chegaram à contemporaneidade - e, é claro, um pedido formal ao papa Gregório IX, que deu início ao processo regulamentar em 1227, continuado por seus sucessores. Depois de várias delongas, somente em torno de 1233 a comissão encarregada foi ouvir as testemunhas e os recipientes de seus milagres, mas nesta altura muitos já haviam morrido, as curas milagrosas póstumas haviam cessado e sua popularidade já declinara bastante. O resultado foi o de se abandonar o processo por ausência de evidências suficientes, mas conseguiu-se sua beatificação oficial.[35] Ao longo do século XIII se desenvolveu um culto popular dirigido a ela, em 1324 o papa João XXII autorizou sua veneração pública, e suas relíquias foram autenticadas no encerramento do século XV.[1] Finalmente seu nome foi inscrito como santa na primeira edição do Martirológio Romano, de 1584, aprovada pelo papa Gregório XIII, e sua inclusão foi ratificada na edição revista de 2001 publicada sob os auspícios do papa João Paulo II,[2] que a descreveu como "uma santa extraordinária, uma luz para seu povo e sua época que nos dias de hoje brilha ainda mais intensamente".[36] Para dirimir quaisquer dúvidas que ainda pairassem sobre o seu estatuto de santa, em 10 de maio de 2012 o papa Bento XVI proclamou publicamente sua santidade e determinou que seu culto seja estendido à Igreja Universal na forma devida aos santos, ratificando definitivamente a inclusão do seu nome na lista dos santos católicos.[6][37][38] Em 7 de outubro do mesmo ano, através de Carta Apostólica, foi honrada com o título de Doutora da Igreja, considerando a ortodoxia da sua doutrina, a sua reconhecida santidade, a importância dos seus tratados e sua influência sobre outros teólogos.[39]

Ideias gerais e posição histórica[editar | editar código-fonte]

A criação do mundo em seis dias, iluminura do Scivias.
Seus escritos evidenciam que ela tinha um profundo interesse pela natureza e pela história do mundo. Para ela a Criação e a vida eram essencialmente boas e santas, mas procurava em tudo um significado dentro do drama da Salvação universal e uma utilidade prática para a melhoria da vida na Terra como um todo. Contudo, se torna difícil para a pesquisa moderna interpretar muito de seus textos em virtude de sua densa rede de simbolismosalegorias e metáforas, mas essa mesma complexidade e riqueza é um dos motivos de tanto interesse atual sobre seu pensamento. Segundo Jane Duran, a metafísica de Hildegarda evoluiu de modo a formar um conceito integrado sobre o que significa ser Humano no contexto da Criação divina, através de um diálogo entre o vitalismo monista, tipificado na sua concepção abrangente e unificada da origem, estrutura e destino do cosmos, e o dualismo, expresso em sua constante preocupação com a luta entre o bem e o mal.[40] Tentou mostrar que o homem desempenha um papel de grande relevo na ordem do mundo, mas enfatizou sua união essencial e indissolúvel com o restante da natureza. Também reafirmou a primazia absoluta do Criador, o Deus Triuno, como a fonte, essência, substância, justificativa e fim de tudo:
"Deus é quem vive, é quem trabalha, e é quem conhece. Nele todas as coisas têm o potencial da perfeição. Todas as coisas se tornam distintas e perfeitas através daqueles três poderes.... Deus está além da mente e do entendimento de todas as criaturas. Na claridade de seus mistérios e segredos Ele provê para tudo e governa sobre todos, assim como a cabeça governa todo o corpo".[41]
Sua cosmologia incluía ainda outras entidades em uma ordenação hierarquizada, como os anjos e diversas outras que descreveu em suas visões, e incluía nesta ordem as virtudes em abstrato, o que de certa forma a aproximava da concepção platônica das ideias, que em sua época estava sendo redescoberta através dos escritos do Pseudo-Dionísio e de Escoto Erígena.[28][40] Sua concepção da anatomia esotérica do ser humano derivava em parte da filosofia clássica, ao vê-lo composto por proporções específicas dos quatro elementos, mas a herança cristã, predominante, se tornava evidente na aceitação da ortodoxia católica em todos os aspectos fundamentais. A forma humana era a forma por excelência da Encarnação do Verbo divino; assim os homens eram verdadeiras encarnações divinas, compostos por alma e corpo numa união originalmente harmoniosa e pura - Adão e Eva -, e ainda que descrevesse a alma presentemente como caída, continuava poderosa e podia ser redimida pela graça de Cristo e pelo exercício das virtudes, e enfim voltar voluntária e conscientemente para sua origem sublime. Criatura dúplice, ao mesmo tempo fraco e forte, augusto e deplorável, mortal e imortal, o homem de qualquer forma ocupava para ela o lugar mais destacado na estrutura do cosmos, espelhando-o em si mesmo e sendo o rei e senhor da natureza. Por isso jamais poderia viver em isolamento e devia trabalhar em prol de tudo ao seu redor, tanto para o bem do mundo como para seu próprio, pois o corolário de sua visão era que tudo fazia parte dele e ele fazia parte de tudo, tudo estava em Deus e Deus estava em tudo através da Encarnação. Desse modo, com o uso da razão, da vontade e do senso de responsabilidade de que fora dotado, e com o concurso das outras potências espirituais que Deus depositara em sua alma e que faziam parte da vida e poder do próprio Deus, o homem podia, se quisesse, ser um auxiliar inestimável de seu Criador na realização de todas as potencialidades do universo. Porém mais do que uma opção, a colaboração entre homem e Deus era, para Hildegarda, indispensável para que o universo chegasse à sua plena floração (opus per hominem floreat), e não é gratuita a palavra "floração", pois em todos os seus escritos natureza e homem são sempre correlacionados e compartilham também de uma simbologia comum.[42]
A intimidade entre homem e natureza era tanta que, segundo o que escreveu, o comportamento humano era capaz de alterar o meio ambiente, atribuindo a irregularidade do clima ao estado de incessante inquietude humana, pois essa agitação confundia os elementos e os fazia saírem de seus limites, com resultados desastrosos. Chegou a dar fala aos elementos naturais, fazendo-os clamar pela justiça divina contra a insensatez humana: "Todos os elementos e todas as criaturas choram em alta voz diante da profanação da natureza e da devoção maligna da humanidade ao seu modo de vida de rebelião contra Deus, enquanto que a natureza irracional cumpre submissa as leis divinas. Eis o motivo pelo qual a natureza protesta tão amargamente contra a humanidade", ao que Deus respondia dizendo: "Eu os purgarei com minhas varas e os atormentarei até que voltem para mim.... os ventos terão fedor de putrefação e o ar vomitará tanta sujeira que as pessoas não ousarão sequer abrir suas bocas", e esse quadro soa como uma sombria prefiguração dos problemas ecológicos de hoje.[43][44] Se o mundo físico e seus elementos constituintes estavam para Hildegarda investidos de tanta importância, os meios pelos quais o homem tomava conhecimento do mundo também foram valorizados - seus sentidos corpóreos - a ponto de ela declarar que "somos fortalecidos e conseguimos a salvação de nossas almas através dos cinco sentidos.... podemos conhecer todo o mundo através de nossa visão, entendê-lo através de nossos ouvidos, distinguir as coisas pelo olfato.... dominá-lo com nosso toque, e desse modo chegamos a conhecer o verdadeiro Deus, autor de toda a Criação", o que ressalta o papel central que atribuía à Encarnação no processo de Redenção da humanidade.[45]
Seus escritos mais importantes, os que relatam suas inúmeras visões, não eram inconsistentes com o pensamento corrente de sua época. Apesar do florescimento das universidades e da ciência em geral, a inspiração divina na aquisição do verdadeiro conhecimento era ainda aceita como uma possibilidade real, e de extrema importância quando considerada autêntica, como foi o seu caso. Todo o conhecimento que acumulou procedeu, segundo sua declaração, da fonte sobrenatural, apesar se valer de muita observação e experimentalismo diretos especialmente quando estudou a medicina e áreas correlatas. O dado mais original em seu pensamento foi sua forte tendência a analisar tudo numa perspectiva holística, e disso deriva o seu grande apelo para os movimentos ecológicopacifista e naturista modernos.[40] Ao interligar várias correntes distintas de pensamento em um corpo conceitual bastante integrado, seu trabalho tem afinidade com o de pensadores contemporâneos que não podem ser encaixados facilmente em uma única escola, como Alan Watts e Fritjof Capra. Para Hildegarda não fazia sentido analisar um fenômeno específico isoladamente, mas era essencial ter uma visão do todo e dos múltiplos relacionamentos estabelecidos entre suas partes.[46] Apesar de Hildegarda ocupar um lugar importante na cultura do século XII, é difícil determinar as fontes teóricas para sua cosmologia e sua exegese. Colocando sua força na inspiração divina e dizendo-se iletrada, apenas em poucos casos citou outros autores em seus próprios escritos. Além das fontes óbvias das Escrituras e da literatura patrística produzida entre outros por Santo AgostinhoSão Gregório Magno e o venerável Beda, que eram canônicos e largamente conhecidos, tentativas de ligá-la a escritores além destes têm se provado sempre conjeturais, especialmente no que tange aos clássicos e aos apócrifos, mas com muita probabilidade retirou inspiração também da literatura beneditina, dos populares florilégios sobre os santos e de contemporâneos doutos como Bernardo de Claraval e Hugo de São Vitor.[47]
Iluminura do Scivias mostrando o corpo místico da Sabedoria.
Outros aspectos de sua carreira e obra que têm sido de muito interesse para a atualidade são, em primeiro lugar, o fato de ela ter sido uma mulher respeitada numa sociedade patriarcal misógina que via as mulheres com olhos cheios de preconceito, correspondendo-se em pé de igualdade com papas, altos prelados e autoridades profanas, e conseguindo muito do que quis; e em segundo, o grande papel que atribuía ao feminino na ordem do universo. Imagens femininas alegóricas investidas de grande poder abundam em seus textos, como a , a Igreja e a Caridade, mas em especial a figura da Sabedoria, e é significativo que ela se recusasse atribuir a culpa do pecado original a Eva. O próprio Deus, em seu tempo invariavelmente considerado uma entidade masculina, é descrito por ela muitas vezes como uma mãe amamentando a Criação e velando por sua progênie. Mas é preciso assinalar que essa ênfase no feminino não a levou a uma negação do masculino, nem a um confronto direto com as definições da ortodoxia dogmática do Cristianismo - o que ela parece ter buscado foi uma harmonização entre os opostos, o que também fez parte de uma tendência de seu tempo se lembramos do crescimento então do culto Mariano, do qual ela mesma foi grande devota. Em terceiro lugar vem sua abordagem franca da sexualidade humana, analisada tanto sob uma óptica teológica quanto fisiológica, mas também nesse terreno foi cuidadosa, herdando parte da tendência condenatória do desejo e do prazersensual de seu tempo mas mostrando-os como funções essenciais do corpo e necessárias para o bem-estar humano no estágio evolutivo em que se encontra. Finalmente, traçando um painel histórico dos papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres - a maternidade ou a vida religiosa - não via nenhum deles como de todo satisfatórios, mas se manteve numa posição ambivalente a esse respeito, com certeza pressionada pelo seu contexto.[48][49]
Como observou Barbara Newman, sua contribuição foi tão excepcional em se tratando de uma mulher de sua época, que os pesquisadores modernos, com todo seu aparato teórico e instrumental, ainda consideram difícil analisá-la com suficiente objetividade e avaliar sua real importância. Alguns a consideram simplesmente uma anomalia bem sucedida; muitos compreensivelmente duvidam da origem divina de seus escritos, mas em geral não se considera imprópria a elevadíssima estima que ela desfrutou entre seus contemporâneos, que a chamaram de "A Sibila do Reno", a "Profetisa dos Teutões" e outros epítetos grandiloquentes, nem se vê como injusto ela ter-se tornado um dos ícones do movimento feminista do século XX. É de assinalar algumas de suas conquistas: foi a primeira mulher a ser considerada uma autoridade em assuntos teológicos; a única mulher medieval a quem se concedeu o direito de pregar a doutrina cristã em público; a autora do primeiro auto sacro jamais escrito e o único dramaturgo no século XII que não permaneceu anônimo; a única mulher medieval a ser lembrada como compositora de um extenso e qualificado corpo de obras musicais; o primeiro autor a escrever sobre sexualidade e ginecologia de um ponto de vista feminino, e o primeiro santo a ter uma biografia oficial que inclui trechos autobiográficos. Todas essas realizações são extraordinariamente notáveis por ela ter sido uma mulher do século XII, mas não apenas por isso, suas obras em todos os campos a que se dedicou têm um elevado mérito próprio independentemente de seu gênero, e ela foi comparada a sábios seus contemporâneos como Avicena. Mas a despeito de em muitos pontos ela ser uma pioneira e uma inovadora, em muitos outros ela manteve uma postura conservadora, às vezes até retrógrada, e somente um estudo contextualizado e detalhado pode trazer à luz onde sua obra foi típica ou atípica, original ou rotineira. É certo, porém, que seu conservadorismo em tudo o que era essencial ao dogma cristão, face ao poder indisputável da Igreja naquele tempo, foi o que possibilitou sua ascensão a uma posição tão destacada, de onde abriu um caminho para que outras mais tarde lhe seguissem o exemplo sem serem imediatamente silenciadas.[50][51]
Iluminura do Scivias mostrando as hierarquias angélicas.
Também é interessante notar que suas ideias sobre as regras e disciplinas monásticas se inseriam numa tradição que em seu tempo já parecia antiquada, diante da emergência de novas formas de religiosidade que enfatizavam a pobreza absoluta em imitação do exemplo evangélico. Sua posição a esse respeito ficou clara na polêmica que travou com Tengswich, abadessa de um mosteiro em Andernach, que a havia acusado de receber em sua casa apenas jovens da nobreza e lhes permitir o uso de jóias finas durante a Eucaristia. Respondeu ironicamente dizendo que não se devia manter animais de espécies diferentes na mesma gaiola, defendendo o princípio da discriminação de classe, acrescentando que até mesmo os anjos possuíam uma hierarquia e que as monjas deviam sim se vestir como nobres em sua condição de esposas de um rei, Cristo. Nesse sentido ela continuava o costume do clero de origem aristocrática de combinar renúncia pessoal de bens, poderes e títulos seculares ao mesmo tempo que preservavam sua influência, prestígio e riqueza corporativa. Essa posição aparentemente elitista, que tem-lhe atraído críticas também na atualidade, era consistente com a sua atuação como reformadora social e religiosa, já que não propôs uma mudança na estrutura da sociedade ou da Igreja, apenas combateu seus abusos e perversões. Apoiava a tendência de seu tempo de interpenetração dos poderes temporal e espiritual sob a primazia da Igreja, desejando restabelecer na Cristandade a sujeição dos príncipes ao clero, e do povo às hierarquias constituídas, mas dentro do espírito da ordem e da justiça sociais.[52][53]
Famosa em vida, sua obra se tornou uma influência sobre os beneditinos, foi aceita como autoridade pelos teólogos da influente Universidade de Paris, teve seus escritos compilados e comentados por vários autores, e chegou a ser plagiada. Mas ela não criou uma "escola". Sua contribuição como escritora, teóloga e compositora musical foi esquecida pouco depois de seu desaparecimento - salvo na Inglaterra, onde permaneceu em alta até o século XIV -, tanto pela mudança na sensibilidade da época, que passou a ver seu estilo como obscuro e difícil, e também em virtude de sua obra ter sido bastante ofuscada pela de sua única continuadora direta, Elisabeth de Schönau, que foi muito mais lida apesar de hoje ser considerada de menor importância e muito menos brilhante. Foi mais lembrada pelos séculos à frente como profetisa, pregadora e visionária, principalmente pela circulação de algumas de suas cartas e pela divulgação de uma série de suas profecias apocalípticas, compiladas, resumidas e interpoladas com comentários próprios pelo monge cisterciense Gebeno de Eberbach. Intitulada Pentachronon (c. 1220), essa coletânea se tornou muito mais popular do que seus escritos originais para o gosto da Idade Média tardia e foi reproduzida em incontáveis manuscritos.[54][55] Durante o Renascimento sua figura foi em parte redescoberta, com a publicação de um relato um tanto fantasioso sobre sua vida pelo abade de Sponheim, e as primeiras edições impressas do Scivias e do Physica apareceram na Françaem 1513 e em 1533, respectivamente. Por outro lado, a autenticidade de seus escritos foi posta em dúvida, sendo considerados um produto do monge Volmar ou de algum outro autor escrevendo sob pseudônimo, e ela foi acusada de protestantismo pela sua condenação dos abusos do clero.[24][54]
A partir da segunda metade do século XX o interesse pela sua figura histórica e seus escritos renasceu, especialmente através dos estudos monumentais de Marianna Schrader, Christel Meier e Aldegundis Führkötter, e com as traduções feitas dos originais latinos para o inglês por Otto Müller, tornando acessível seu trabalho para um público muito mais vasto, de modo que atualmente sua produção já é objeto de análises particularizadas por um bom número de acadêmicos da Europa e Estados Unidos, destacando-se Peter Dronke, Barbara Newman e Heinrich Schipperges, entre muitos outros.

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